O POUSO DO CENTAURO DESGARRADO

O retorno ao Brasil
Marcos Pontes
11/06/2006

“Centauro 77 na base, baixado e travado, pouso final.”
“77, trem checado, livre pouso, vento calmo”.
Quantas vezes falei isso. Quantas vezes ouvi essa resposta da torre de controle. Quantos pousos na “pista 28” da Base Aérea de Santa Maria. Quanto azul voando nos céus do Brasil. Os céus que cada Centauro, cada piloto de combate, jurou defender. A vida pela missão. A missão pela vida daqueles que protegemos. A vida pelos brasileiros. Pessoas que não conhecemos na maioria, mas é a nossa nação. Essa é a missão do piloto de combate. Essa é a nossa missão no ar.
Porém, certamente não voamos a vida ou os dias inteiros. Então, uma vez no solo, termina a missão do piloto de caça? Não! Claro que não! Ser caçador não é uma profissão, é um estado de espírito. Não importa estar no ar ou na terra. Sempre existirá dentro do coração de caçador a mesma coragem, força, garra e amor pela pátria. Exatamente a mesma determinação que nos faz manter o vôo e prosseguir na missão dentro da mais pesada artilharia anti-aérea. Isso é o caçador, isso é o Centauro.
Um grupo do qual eu me orgulho de fazer parte! Amigos que você sabe que sempre estarão contigo, nos momentos de sacrifício da missão ou nos momentos de comemoração.
Sexta-feira era dia de churrasco no Esquadrão. Depois do pouso, no caminho do avião para o prédio do esquadrão, já podíamos sentir o cheiro da carne, que se espalhava no ar frio dos pampas. O traje “anti-g” ficava pendurado ali mesmo, em uma das colunas do quiosque da churrasqueira. Ali colocávamos a conversa em dia. Papo de piloto. Papo de amigos que confiam a vida entre si. O regresso, depois de uma missão operacional suada, tinha esse sabor de recepção. A recepção de amigos de verdade. Amizade viva.
Costumo dizer que a atividade do vôo, de certa forma é um bom simulador da “atividade da vida”.
Segui meu vôo na vida, desgarrado. O Centauro desgarrado.
Voei por dias claros e noites escuras. Sobrevivi a tempestades e solidão. Fui ferido e disparei minhas flechas. Sofri e sorri. Estive em lugares onde poucos se arriscaram. Conheci a Terra e as estrelas. Encarei meus temores e toquei os meus sonhos.
No dia 19 de abril, retornei ao Brasil, depois de cumprir 8 anos de treinamento, 10 dias no espaço e 10 dias de recuperação no hospital em Moscou. Era o retorno ao meu país. O regresso, depois de uma missão operacional suada. A minha expectativa era baseada na lembrança daqueles pousos no Esquadrão Centauro. Parti da Rússia pensando sobre isso. Expectativa viva.
Cheguei em São Paulo e encontrei minha família. Foram momentos curtos, depois de longos meses de separação. Mas o amor não se distancia. Amor vivo.
De São Paulo, segui direto para Brasília em avião da Força Aérea. No caminho, escolta de companheiros da Caça. Sensação interessante. Parecia estar no avião errado.
Na Capital, discursos, medalhas e um nó na garganta, de felicidade, quando vi todas aquelas crianças agitando bandeiras do Brasil e cantando o nosso hino. O mesmo ocorreu quando encontrei com mais de mil crianças no Parque da Cidade em São José dos Campos. Esperança viva.
Na festa da caça, em Santa Cruz, no Rio de Janeiro, revi antigos amigos. Voei novamente um avião com emblema do Centauro. Vi o passado, o presente e o futuro da nossa aviação de combate cantando juntos as canções da nossa história e homenageando Santos Dumont. História viva.
Os cadetes da AFA, a Academia da Força Aérea, em Pirassununga, me mostraram nos olhos e na força dos seus “gritos de guerra”, que as frases escritas nas paredes daquela escola, tão querida para mim, não são apenas palavras. Hoje eles têm certeza de que aquele caminho realmente leva aos astros. Certeza viva.
Bauru, minha cidade natal, “cidade sem limites”. Nós, como seus filhos, temos que tentar fazer valer o seu “slogan”. Encontrei velhos amigos. Conheci novos amigos. Vi pessoas que eu nunca vi. Mas sentimos, juntos, o doce sabor do regresso, da missão cumprida pelo país. Senti o carinho como qual me trataram. Carinho vivo.
Vi meu nome escrito nos céus. No mesmo aeroclube e pela mesma esquadrilha de aviões coloridos que incentivaram meu sonho de voar há tanto tempo. Saudade viva.
A frase escrita com fumaça desapareceu ao vento depois de algum tempo. A memória nunca esquecerá. A imagem de meu pai, ao meu lado, sorridente aos 88 anos, olhando para cima, olhando para as palavras escritas com fumaça, também nunca esquecerei. Orgulho vivo.
Hoje, passados aqueles dias de retorno e as turbulências esfumaçadas do sentimento humano, viverão para sempre, a saudade das estrelas, o orgulho de um pai, o amor de uma família, a amizade de verdadeiros amigos, o carinho de milhões de pessoas, o registro na história do país, a expectativa que os ensinamentos sejam utilizados pela juventude, a esperança no futuro e a certeza de que farei a minha parte.
O Centauro pousou depois do longo vôo. Cumpri minha missão nos céus. Resta agora a missão maior na terra. Resta agora o coração de caçador. Resta agora o coração de Centauro!

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